sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O Sétimo Selo (parte II)

XVI
A cidade era diferente do que esperava. Admirou-se sobretudo com a elegância arquitectónica dos edifícios, linhas distintas que Irkutsk aliava a um certo ar cosmopolita; definitivamente, ninguém diria que estavam numa terra perdida algures no meio da Ásia, a uns meros dois passos da Mongólia. A arquitectura apresentava os imponentes traços europeus do século XIX, elegante e clássica, intercalada por graciosas casas de madeira, aqui e ali um mamarracho da era soviética a destoar na composição quase harmoniosa.




"E bonito, isto", comentou o visitante, sem tirar os olhos das ruas.
"Claro que é bonito", concordou Nadezhda. "Irkutsk era uma cidade aristocrática, conhecida como a Paris da Sibéria."
"Que nome tão burguês", disse ele. "Esses ares parisienses devem ter acabado logo que os comunistas tomaram o poder, não?"
"Estás enganado. Os czaristas resistiram aqui muito tempo, o que pensas tu? Os comunistas só conseguiram entrar na cidade em 1920."
O táxi cruzou toda a parte velha de Irkutsk pela longa Ulitsa Karla Marksa, até apanhar lá ao fundo a Ulitsa Oktyabrskoy Revolyutsii e deixá-los no terminal de autocarros. Nadezhda pediu setecentos rublos a Tomás e entrou na bilheteira, de onde saiu com dois rectângulos na mão.
"Procura a camioneta que vai para Khuzhir", pediu ela.
Tomás olhou para as indicações no topo dos vidros e encolheu os ombros.
"Desculpa, Nadia, não percebo nada", disse, sentindo-se uma nulidade, um verdadeiro peso morto. "Está tudo escrito em caracteres cirílicos."
"B#&%", blasfemou a russa, os olhos em busca da sinalização para Khuzhir.
"Por que razão não aprendem vocês a ler como toda a gente?"





Acomodaram-se nos últimos assentos da camioneta, que já ronronava para aquecer o motor. O veículo enchia-se de passageiros de traços asiáticos e origem evidentemente humilde, buryats que traziam caixas com pintos e sacos de plástico carregados de compras; uns eram camponeses, outros pescadores, e todos exalavam o odor forte das gentes rudes da província. Partiram minutos mais tarde, ziguezagueando pelo emaranhado urbano até deixarem a cidade e gradualmente entrarem na taiga, percorrendo uma estrada paralela à cadeia de montanhas Primorskij Hrebet.



O percurso pareceu-lhes monótono, tão entediante que, embalado pelo balouçar preguiçoso da camioneta, Tomás foi sentindo os olhos pesarem-lhe e a cabeça cambalear, como se respondesse sim aos urros do motor; um e outro solavanco despertaram-no a espaços, fazendo-o endireitar-se com brusquidão e sorrir fugazmente à sua companheira de viagem, mas depressa voltava a deslizar para o sossego, invadido por uma pesada e irresistível lassidão, até que o sono foi assentando e mesmo os abanões mais violentos deixaram de o incomodar.
A súbita percepção de que algo de novo acontecera despertou-o da sua letargia. Ergueu a cabeça e, estremunhado ainda, ignorando o pescoço dorido pelo incómodo da posição em que adormecera, tentou perceber o que se passava. Parada.



A camioneta estava parada. O motor tinha sido desligado e os passageiros erguiam-se com dificuldade dos seus assentos, agarrando sacos e pegando em caixas, esticando-se para desentorpecerem os corpos moídos e soltando as pequenas risadas do penitente que antecipa com alívio o fim do suplício. Olhou para o lado e viu Nadezhda pôr-se de pé, também ela se aprontava.
"Chegámos?"
"Ainda não, Tomik."
O português olhou em redor, sem compreender. Os passageiros continuavam a preparar-se para sair, alguns já saltavam lá para fora, e a camioneta encontrava-se definitivamente estacionada.
"O que se passa?"
"Estamos em Sakhyurta", disse ela, fazendo-lhe sinal de que saísse. "Vamos agora apanhar o ferry."
"Ainda há um ferry para apanhar?" Teve uma expressão de desespero. "Mas esta maldita viagem não acaba?"
Nadezhda apontou para a frente. Tomás olhou e, para além da verdura nua que cobria o parque onde a camioneta se imobilizara, viu um pequeno cais e um vasto lençol de água a reluzir ao sol, os reflexos bailando no espelho irrequieto.
"Temos de ir para o outro lado."
Saltaram para a rua e a russa levou Tomás por um caminho íngreme e acidentado que desembocou no topo de uma falésia, junto a um penedo situado a alguns metros de altura. A vista dali de cima era magnífica; a superfície líquida serpenteava diante deles, cercada por penhascos à esquerda, uma língua de terra em frente e o fio do horizonte à direita, para além do qual se estendia a planície de água.



"Que mar é este?", admirou-se o português.
"É o Baikal."
"O quê?"
"É o Baikal", repetiu ela. "O maior lago do mundo. Concentra-se aqui um quinto da água potável existente em todo o planeta."
Tomás cravou os olhos incrédulos no azul cristalino das águas mansas, agitadas com doçura por uma ondulação ténue.
"Não pode ser. Um quinto da água potável do planeta?"
"É incrível, não é? Em extensão, o Baikal é maior do que o teu país, vê lá tu."
"A sério?"
"Chamamos-lhe a pérola da Sibéria, por ser assim tão bonito." Fez uma careta. "Mas lá na faculdade o Baikal é mais conhecido como a cozinha da Sibéria."
"De pérola a cozinha vai uma grande distância", sorriu Tomás. "Por que razão lhe dão esse nome horroroso?"
"É só na faculdade que lhe chamamos assim", sublinhou ela. "Sabes, este lago é muito estudado no meu curso devido à sua influência em todo o clima da região. E aqui que se cozinha o tempo da Sibéria, daí a alcunha. O facto é que os sistemas meteorológicos da Ásia dançam ao ritmo do que se passa no Baikal."
Tomás contemplou o espelho azul que se intrometia por entre o verdeacastanhado da estepe, como uma estrada, reflectindo o céu e os flocos de nuvens. A água era transparente, tão límpida que conseguia mesmo vislumbrar cardumes a serpentearem sob a superfície, os peixes virando para um ou para outro lado todos ao mesmo tempo, como um único corpo.
"Que pureza", observou, inspirando o ar fresco perfumado pelas fragrâncias da erva rasteira. "Ainda bem que há sítios no mundo onde a poluição não chegou."
A russa afinou a voz.
"Não é bem assim", corrigiu-o. "Existe uma fábrica de celulose em Baikalsk, mesmo na ponta sul do lago, que anda há quatro décadas a despejar detritos nestas águas."
"Não me digas."
"E não é tudo. O delta do rio Selenga, que é tão grande que tem quase o tamanho da França, desagua na margem sul com detritos orgânicos e inorgânicos das minas de Buryatia e da pastorícia da Mongólia. É uma imundície pegada. E o cúmulo é que descobriram agora petróleo aqui no Baikal e querem construir um oleoduto."
"Mas a água está tão limpa..."
"O Baikal é um lago enorme", explicou ela. "E felizmente a poluição tem ficado confinada a zonas específicas, como o delta do Selenga e a ponta sul. Mas, se não tivermos cuidado, qualquer dia tudo isto desaparece."
Tomás suspirou e ficou um longo momento a contemplar o lago. Os olhos percorreram todo o horizonte, começando na pequena enseada à esquerda, onde reluziam os telhados baixos da aldeia piscatória de Sakhyurta, e acabaram por pousar no cais, lá em baixo, onde uma rampa de cimento desembocava na água, como uma ponte inacabada.
"O ferry nunca mais aparece?"
"Ele já vem, tem paciência."
"Vamos para onde, afinal?"
A russa apontou para a língua de terra em frente.
"Para aquela ilha ali."



A ilha erguia-se perto, separada do continente por uma estreita passagem, a terra ondulada acastanhada pela estepe.
"Que ilha é esta?"
"É uma ilha mágica."
O português franziu o sobrolho.
"Mágica em que sentido?"
"É uma ilha xamane, um sítio de meditação onde o mundo da matéria interage com o mundo dos espíritos."
"Estás a gozar..."
"A sério. Este é um sítio sagrado e misterioso, o palco de lendas e de contos de fadas, a casa dos espíritos do Baikal. Os místicos dizem que se encontra aqui um dos cinco pólos globais da energia xamane."
"Ah, sim?" Contemplou a ilha com mais atenção, ardendo de curiosidade, num misto de fascínio e cepticismo, como se esperasse que das suas brumas emergisse o mistério, que da sua sombra se fizesse luz. "Como é que ela se chama?"
"Olkhon."
Quando o ferry apareceu, surpreendeu os dois pacatamente sentados na casa de chá de um acampamento yurt, junto ao lago, a tomarem uma tisana de pimenta e a deliciarem-se com uns pirozhki doces. Terminaram a bebida com vagar, pagaram e caminharam de volta para a camioneta, para onde convergiam já os restantes passageiros. O parque de estacionamento agitou-se em uníssono; ouviam-se gritos e ordens, motores a serem ligados, buzinadelas e portas a bater, eram todos os autocarros, camiões e automóveis que se preparavam para retomar a viagem.



O ferry manobrou até se colocar em posição e, uma vez ancorado em segurança, abriu a sua grande porta e, como um monstro esfaimado de goela escancarada, engoliu os veículos que se alinhavam diante dele. O espaço no batelão não era grande, apenas ali cabiam dois autocarros lado a lado e uma mão-cheia de automóveis, e os passageiros tiveram mesmo de empurrar um dos autocarros pela rampa. Toda a operação acabou por levar mais tempo do que a travessia em si, uma viagem que durou uns meros quinze minutos.



O primeiro ponto por que passaram foi o ventoso cabo Kobylia Golova, o formato das rochas lembrava um cavalo de pedra a beber água no lago. Uma buryat que vinha com eles na popa observou, orgulhosa, os cabelos negros e lisos a esvoaçarem, que Genghis Khan e os seus guerreiros, todos eles também buryat, outrora tinham saciado ali a sua sede.
"Dizem até que o grande conquistador do universo foi aqui enterrado", explicou a mulher.
"Quem?"
"O grande conquistador do universo", repetiu. "Genghis Khan."
Passaram ao lado da pequena baía de Khul e ancoraram em plena estepe, onde o grande barco despejou a sua carga sobre rodas.



Olkhon.
Chegaram a Olkhon, a ilha mágica.
A camioneta retomou viagem e cruzou a pradaria nua aos solavancos, o motor a urrar com a aceleração esforçada, o escape a bufar o fumo negro do gasóleo queimado. A erva rente amontoada em tufos estendia-se até ao lago, mas depressa surgiram sinais de que a paisagem possuía contornos diferentes noutros pontos. Em alguns minutos apareceram renques de árvores à direita; era a taiga que subia pelos montes e disputava à estepe o controlo da ilha; a pradaria estava voltada para a margem norte, a floresta de coníferas virada para o lago aberto. Serpentearam pelas elevações da passagem Khaday e desceram para a planície junto ao Baikal. A camioneta atravessou uma aldeia e prosseguiu, a margem ocidental da ilha a abrir-se em pequenas baías e graciosas enseadas; do outro lado do estreito vislumbrava-se a taiga continental, escarpada nas montanhas. O veículo aproximou-se de um povoado e só então abrandou a marcha.



"Khuzhir", anunciou Nadezhda.
Tomás animou-se no assento. "Chegámos?"
"Quase."
A camioneta imobilizou-se na praça principal de Khuzhir e o motor emitiu um ronco final antes de se calar definitivamente, como o derradeiro suspiro de um moribundo. Os passageiros desaguaram pela porta numa grande excitação e foram acolhidos por vizinhos e conhecidos numa animada algazarra, parecia que a aldeia inteira tinha acorrido à chegada da camioneta em busca das novidades da civilização.